Governança criminal e os novos autoritarismos
Por Adson Kepler Monteiro Maia
No 13º Encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública o pesquisador Benjamin Lessing da Universidade de Chicago, um crítico da política conhecida como “guerra às drogas”, divulgou um conceito interessante que faz parte de sua tese de doutorado: a “governança” criminal. Segundo o pesquisador, a governança criminal ocorre quando num determinado território ou comunidade uma organização criminosa exerce poder de mando e o Estado não consegue intervir ou influir de nenhum modo nesse espaço definido por um território ou por uma comunidade. Por conseguinte, os criminosos conseguem manter um tipo de organização paralela a organização formal estatal com forte direção e controle sobre a rotina das pessoas que ali vivem. As pessoas sob a governança criminal obedecem, seja por medo ou conformismo, a uma forma esdrúxula de governança ilegal diretamente relacionada a intuitos criminosos, como exemplo, o tráfico de drogas e a manutenção de milícias.
No mesmo evento, outro pesquisador chamado Manuel Tufró, do Centro de Estudos Legais e Sociais da Argentina, mencionou outro conceito instigante que pode ser muito bem relacionado a referida governança criminal como um de seus elementos: o novo “autoritarismo”. Do que se trata? A Argentina viveu durante a última ditadura um autoritarismo extremo imposto pelo Estado que supera em muito o regime autocrático vivido no Brasil no mesmo período. A Argentina naquela época era um país com a maioria de sua população vivendo em áreas urbanas, ao contrário do Brasil de 1964, e impôs muito mais resistência ao regime militar. A Argentina é uma nação com características históricas bem diferentes do Brasil, apesar da proximidade geopolítica e de problemas sociais semelhantes. O que mais marcou a sociedade argentina naquela época foi o autoritarismo do Estado que exercia medidas contrárias às leis, à Constituição, assim como ocorre em qualquer ditadura independente de seu espectro ideológico. Isso de alguma forma inspirou, neste atual período, a se denominar as novas gangues que surgem na periferia de grandes cidades como Santa Fé, Buenos Aires e Córdoba de “novos autoritarismos”, pois seriam novas formas de autoritarismos surgidas num período de democracia constitucional, apesar da pouca democracia social. No caso se trata de um autoritarismo individualista de grupos criminosos que surgem no seio social por ausência do Estado, bastante diverso do autoritarismo gerado no seio do próprio Estado contra opositores, suspeitos, vítimas colaterais e falsos positivos da repressão penal ou política. Aqui qualquer tipo de oposição incomoda os líderes de um grupo de pessoas que tentam estabelecer uma espécie de governança paralela ao Estado com o propósito de se auferir proveito de crimes. Não se trata de uma autoridade constituída que agride os direitos dos cidadãos no âmbito do Estado, mas de uma autoridade paralela, que almeja ser mais forte que a autoridade pública. Daí chamarem o fenômeno de um novo tipo de autoritarismo. Se as relações de poder não legitimadas pela sociedade constituem um mal, então qualquer relação de poder ilegítima é um mal, inclusive a que colide com os direitos individuais e transindividuais naquele meio.
A Argentina não possui ainda facções criminosas como o Brasil ou cartéis como o México, apenas gangues de bairro e a criminalidade organizada age ocultamente. Mas o conceito parece se adequar muito mais a nossa realidade de territórios dominados por facções.
A governança criminal se inicia de forma embrionária com pequenos grupos de infratores, gangues de bairros, depois evoluem para facções que se unem, se expandem territorialmente, até que viram cartéis do crime de vasta extensão territorial. Um dos efeitos colaterais da ausência do Estado é que no meio dos conflitos gerados pelas formas não estatais de coerção e autoritarismo surgem grupos de extermínio que evoluem para milícias, grupos paramilitares e organizações mafiosas.
O novo autoritarismo dessas organizações criminosas se dá pelos danos às liberdades individuais como o direito de ir vir, de moradia, de trabalho, de ter acesso a bens e serviços sem ter que pagar tributos ilegais a uma entidade ilegal e socialmente ilegítima. Trata-se de proteger o direito de cada um de não ser expropriado de seus bens e renda adquiridos licitamente.
Segundo Lessing, no referido evento, na América Latina milhares de pessoas vivem sob governança criminal, principalmente em países como o Brasil, México, Venezuela, Colômbia e Honduras. De acordo com suas pesquisas todos os programas de redução da criminalidade violenta bem-sucedidos se basearam na ampliação da presença do Estado nas áreas que antes eram domínio de uma governança criminal. Quando se comparam todos os programas de redução da criminalidade violenta, todos com muitas diferenças entre si -pode-se citar os programas aplicados em Medellín, Rio de Janeiro, San Pedro de Sula, dentre outras cidades – se percebe que todos resultaram em redução das taxas de criminalidade violenta porque implicaram na presença estatal em locais antes controlados por uma governança criminal. Várias formas são utilizadas para se estabelecer a presença estatal: seja com a construção de escolas, parques e bibliotecas, ou seja com a implantação de unidades de policiamento comunitário e a inserção de agentes mediadores de conflitos. Em outras palavras, trata-se de programas permanentes de presença do Estado nos locais de conflito social e não apenas ações esporádicas de saturação nas chamadas “manchas criminais” (hot spots).
A crítica de Lessing a política de guerra às drogas é científica. Para ele não seria possível eliminar da sociedade 100% de todo o consumo e comércio de drogas, então uma estratégia de guerra contra o tráfico já nasceria fadada ao fracasso por falta de uma meta exequível, assim como o Estado fracassou em proibir o consumo de álcool durante a Lei Seca nos Estados Unidos. Então a estratégia correta seriam aquelas exequíveis como, por exemplo, se estabelecer um limite, uma espécie de linha divisória que se for ultrapassada por usuários e traficantes, implicaria numa ação forte e eficaz do Estado com total certeza de sua execução. A partir daí se estabeleceriam metas exequíveis como a eliminação total dos homicídios e de qualquer tipo de violência, o envolvimento de crianças e adolescentes no tráfico e no consumo, dentre outras metas possíveis e já plenamente parte da realidade de muitos lugares no mundo. Na verdade, é o que já se faz em muitos países desenvolvidos, onde após o insucesso da política de guerra às drogas, se busca a eficácia na redução dos danos, independente da opção de cada país de despenalizar, descriminalizar, liberar ou manter a criminalização das drogas. Muitos países mantém a criminalização, mas usam outras estratégias de repressão ao tráfico e de tratamento dos usuários apenados, como é o caso da Suécia. Já outros preferem a descriminalização de todas ou algumas drogas mais leves, como o Canadá e vários estados norte-americanos.
O Brasil optou pela despenalização da posse e não tem conseguido sucesso contra o tráfico, como deixa claro a formação das facções interestaduais. Devido a precariedade do Estado, dos órgãos de atendimento e fiscalização não policiais e da Saúde Pública, ainda é uma incógnita o melhor caminho a ser adotado pelo Brasil. Não há consenso entre os especialistas e a discussão tem tomado um rumo confuso na polarização política.
Depreende-se das falas dos pesquisadores que existem vários caminhos para a redução da criminalidade violenta, mas todos passam pela eliminação da governança criminal com a intervenção e a presença do Estado nas comunidades e territórios. O Estado ainda seria o único ente capaz, na realidade atual, de direcionar os recursos e a expertise necessária para esse intento.
A boa notícia que sempre vem à tona nos fóruns de discussão de segurança pública é que existem muitos exemplos de sucesso na redução da criminalidade violenta, como Foz do Iguaçu, San Pedro de Sula, Medellín, e mais recentemente, os estados do Rio Grande do Norte e Ceará, com medidas de melhoria que merecem um estudo atento. Ao que parece, estes dois últimos, tiveram melhorias em seus indicadores de criminalidade violenta pelo acréscimo da presença do Estado em duas áreas de governança criminal muito sensíveis, alguns bairros da periferia das maiores cidades e dentro do sistema prisional de cada um dos estados. Mas apesar do otimismo gerado pelos bons exemplos, ainda é preciso muito esforço para se chegar a indicadores sustentáveis no logo prazo, ponto onde será preciso associar segurança e saúde, para possibilitar uma boa educação.
*Delegado de Polícia Civil – Especialista em Direito Internacional -UFRN